quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Quiosque do Ken (Concurso "A verdade sobre o caso Harry Quebert") - 1º lugar


Foi há dois anos que tudo aconteceu e a memória - espelho baço que vai perdendo pedaços do seu reflexo - ficou para ali a preencher vazios no pensamento. Era um dia como outro qualquer, estava frio, as árvores resignavam-se com a sua nudez, firmes, e tudo era silêncio ventoso. Entrou no carro, esfregou as mãos e pôs-se a caminho. O percurso era sempre o mesmo, as casas não tinham mudado de lugar, as curvas teimavam em fazer o mesmo percurso e seguia - olhos distantes nas nuvens que pesavam sobre tudo. Pararia para tomar café antes de subir para o escritório. Um ritual que foi subitamente interrompido. Não subiu para trabalhar, nem nunca mais o faria. Tudo tinha mudado a partir desse instante e, desse dia, apenas tem a recordação marcada, em forma de cicatriz, na palma da mão esquerda.
Ao acordar no hospital, sozinho, com o pensamento vazio e o olhar desfocado, mexeu a língua áspera contra o céu da boca e abriu os lábios colados de saliva seca e apenas conseguiu um breve rugido fraco que lhe arranhou a garganta. Nada aconteceu. Tentou mexer a cabeça, mas os músculos estavam adormecidos e deixou-se ficar nesse turpor. Percorreu com os olhos o quarto vazio - sem som - e não conseguiu suportar o peso das pálpebras e da névoa. Fechou os olhos para as imagens que rapidamente lhe encheram a escuridão e o transportaram novamente para o sono. Uma luz percorreu-lhe os sonhos, acompanhada de vozes distantes. Como se sente? Consegue ouvir-me? Não foi capaz de se libertar do sonho. Milhares de imagens atravessavam a escuridão à velocidade de um relâmpago. Queria libertar um grito e só conseguia engolir saliva espessa. Acordou para o som macio de um movimento de tecido branco. Uma voz distante e inexpressiva disse-lhe bom dia. Apenas conseguiu piscar os olhos, lentamente. O médico vem cá vê-lo daqui a uma hora. Sente-se bem? Foi um sim de garganta seca.

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